Por Gilmar Marcílio
Que coisa. Eu dou uma rápida espiada uma vez por ano, se muito, para ver o que está acontecendo na noite e continuo com a impressão de que as pessoas mais se entediam do que se divertem. Sou o menos indicado na face da terra para analisar com conhecimento de causa os sintomas reveladores de quem a freqüenta. Mas é aquela história: não é preciso passar uma longa temporada com o diabo para descobrir como é o inferno.
Primeiro ponto: todo mundo precisa dar a impressão de que está se divertindo muito, o tempo todo. Para tanto, estampa-se um sorriso na cara como a dizer que, naquele momento, não existe ninguém mais contente no mundo. Claro que quem sai para se divertir acaba esquecendo seus preconceitos mais evidentes para ter um grau de aproveitamento maior das situações que se apresentam. Ainda bem. Cansei de ver criaturas que se horrorizam com isso e aquilo sob a luz do sol e, algumas horas e um pouco de escuridão depois, se entregam sem pudor algum à prática de atos condenáveis e desejados. Na complexidade de nosso ser talvez seja necessário, para não ficar louco, dar vazão a nossos instintos reprimidos, sob risco de, ao não fazê-lo, acabar como moradores provisórios de uma instituição psiquiátrica.
Mas há determinadas situações que me incomodam. Já não sou mais adolescente e sei que meu grau de resistência a tudo aquilo que extrapola o bom senso não é o mesmo de antigamente. Eu me sinto com 130 anos toda vez que entro numa danceteria e sou literalmente agredido por aquilo que se convencionou chamar de música. No máximo é uma batida sincopada, repetida à exaustão, quase um anestésico para que não se consiga sentir (e muito menos ver) o que se passa ao redor. Não deixa de ser curioso nos três primeiros minutos e meio. Parece quase um ritual de iniciação religiosa. Ou profana. E, sim, uma espécie de êxtase pode ser percebido na face dos freqüentadores. Eu falo disso tudo até com uma certa vergonha, pois meu conhecimento prático sobre o assunto é mínimo. Imaginem, sou do tempo em que diversão era reunir alguns amigos para conversar, ir ao cinema, jantar ou até, valha-me Deus, ficar em casa lendo um bom livro. Inacreditável, mas houve uma época em que se fez isso. E não parecia tão ruim assim.
Outro aspecto interessante: todos ficam de pé, perigosamente colados uns nos outros. Acender um cigarro? Um risco sem tamanho. Seria aconselhável que alguém do corpo de bombeiros ficasse vigiando a uma distância razoável. Se você tiver um copo de bebida na mão terá que executar uma complicadíssima ginástica para conseguir que o líquido em seu interior chegue a sua boca. O espaço disponível para fazer qualquer gesto não excede alguns centímetros. Exagero? Sim, talvez sejam milímetros. Vontade de cumprimentar um amigo? Esqueça. Abraços exigem um movimento circular impensável naquela congestão de criaturas. O jeito é seguir esbarrando em todo mundo, com a maior naturalidade possível.
Nessa minha rápida incursão pela noite, me perguntava todo o tempo (azar o meu, aproveitei menos): será que essa turma toda está feliz? A impressão que tive é que as pessoas presentes só agüentavam estar lá porque fumavam e bebiam o tempo todo. Compulsivamente. Quando cheguei em casa (infelizmente sóbrio) e tirei o casaco, senti um impulso de me pendurar inteiro num cabide e ficar hibernando na área de serviço até o final do dia seguinte. Vai ver que minhas exigências são muito altas e eu até já deva pensar em me recolher a um asilo ou a uma casa de repouso. A gente nem sempre percebe se está sendo lúcido ou intransigente. Ou chato, o que é bem pior.
Mas foi até divertido, confesso. Parece que outra raça, tão diferente da que encontramos sob a luz do sol, vai surgindo pelas frestas da noite até conseguir algum tipo de satisfação. Tenho amigos de longa data que entendem essa palavra como sinônimo de ficar despertos até as 6h, pelo menos nas sextas e sábados. É um dos mistérios que, desconfio, jamais conseguirei entender. Eu ficaria tão mal-humorado ao acordar que seria impossível conviver comigo mesmo, se assim agisse. E as olheiras, então? E a dor de cabeça? Argh, não dá nem pra pensar.
No fundo, talvez seja um pouco de inveja o que eu sinta de quem consegue ser assim... como posso dizer, tão plano e que se diverte tanto com tão pouco. Tenho recebido propostas para fazer laboratórios de estudo nesse quesito. Todos empenhados em mudar minha severa opinião. Só se fosse para defender uma tese de doutorado, nada menos que isso. Mas, vá lá saber se não estou perdendo o melhor da vida. Até porque ser graduado em seriedade nunca garantiu o passaporte para a felicidade. Só não precisava ter tanta fumaça, e a música, bem, poderia lembrar vagamente uma música. Continuarei aqui do lado de fora, espiando, vez que outra, o que acontece no coração selvagem das madrugadas. Mesmo que seja só para descobrir que os gatos, todos, continuam rigorosamente pardos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Onde eu não estou
as palavras me acham."
Manoel de Barros
Olá! Fico muito feliz pela sua visita! Responderei ao seu comentário por aqui, portanto volte logo, sim?
Um abraço apertado a todos que por aqui passarem!
Déia
PS: Não esqueça de deixar o link do seu blog no Mural de Devaneios (Mural de Recados) para que eu possa retribuir sua visita.