terça-feira, 11 de dezembro de 2007
NASCIMENTO E MORTE
Texto de autoria de Gilmar Marcílio, extraído da revista Almanaque do Jornal Pioneiro dos dias 08 e 09/12/07
"Passamos a vida negando o mais evidente dos fatos: o de que vamos morrer. Mesmo as pessoas extremamente religiosas têm uma considerável dificuldade em enfrentar de olhos abertos a idéia do próprio fim. Normal. Ninguém imagina que possa ser diferente, exceto os verdadeiramente iluminados, os que já compreenderam que estamos imersos em um padrão de existência - que Buda chamou de Samsara, nossa passagem pela terra - , num ciclo de nascimentos e mortes. Mesmo agora, olhando através da janela a chuva que cai, sentindo o inefável perfume do jasmineiro que começa a florescer, parece-me impossível pensar sobre minha própria morte.
A literatura, o cinema, e como de resto a arte em geral, se encarregam de nos mostrar como tudo é efêmero. A idéia até se torna suportável quando somos espectadores. Ainda outro dia, assistindo a um filme chamado O Mais Belo Dia de Nossas Vidas, numa cena que remetia ao passado, vi-me transportado para a minha infância, brincando com minha irmã, subindo nos pés de bergamota, gastando o tempo da forma mais generosa possível. Meus pais e minhas tias ainda eram jovens e cuidavam de nós de tal maneira que algo em mim parecia dizer 'relaxe, está tudo bem, sempre vai ter alguém protegendo você'. Hoje, algumas dessas pessoas já morerram e as outras se encontram imersas em sua própria velhice. E assim também será comigo. E com você. Mas é preciso não desviar o pensamento quando esse tipo de percepção nos assalta. Não estaremos sendo mórbidos, apenas refletindo sobre a ordem natural dos fatos.
Com as horas escorrendo entre os dedos, como uma ampulheta invisível que carregamos em alguma parte de nosso corpo, resta-nos a certeza de que não podemos desperdiçar manhãs de sol, gentilezas para com amigos e desconhecidos, um certo jeito de acolher aqueles que fazem parte de nossos dias. E de velar com um sentido profundo de responsabilidade todos os seres que habitam este planeta. Entristeço quando alguém maltrata um bicho ou destrói uma planta. Nada está separado de nada e, inevitavelmente, o mal que pensamos estar causando aos outros nos é devolvido. Ação e reação, não há como escapar desse processo no qual tudo está imerso. Nem é necessário filiar-se a algum credo religioso para perceber isso. Eu simpatizo muito com o budismo, mas não penso em renegar os ensinamentos que encontro na doutrina católica, no espiritismo, na umbanda. Todos contribuem de maneira valiosa para que possamos entender melhor o que nos acontece e aquilo que chamamos de existir.
O tempo vai passando sem que percebamos as mudanças que ele provoca em nossa estrutura física e mental. Se tudo está circunscrito na idéia de causa e consequência, então cabe a nós orar e vigiar, como está na Bíblia. Tenho dificuldade em entender aqueles que dizem sentir tédio de tudo. Mesmo quando não somos solicitados a agir, há tantas possibilidades escondidas em nosso mundo interior que dezenas e mais dezenas de anos não seriam suficientes para esgotá-las. A vida é longa e é curtíssima. Depende da maneira como tratamos as experiências que se apresentam. Ao nascer, parece que caímos dentro de um oceano cheio de acontecimentos em potencial, sem os limites que mais adiante descobriremos. Tudo é possível, não há motivo para ter pressa. é essa certeza do infinito, do tempo que não se esgota, que encontramos nos olhos das crianças e dos adolescentes. Mas um dia será preciso investigar a matéria desse mesmo tempo que parecia se refazer quanto mais o gastávamos.
Penso nisso tudo enquanto a chuva persiste nesta tarde de domingo. Investigo mentalmente como passei as horas que antecederam a escrita deste texto. No breve exame, me dou conta de que fui insuficiente não só em atitudes, mas também em observar mais cuidadosamente o que se passou ao meu redor. Um dia - logo, tão logo - teremos que devolver tudo o que acreditamos possuir para sempre. Alguns preferem nem pensar nessa hipótese. Outros, talvez mais cuidadosos, se dão conta de que algumas engrenagens começam a falhar, que a contemplação toma o lugar do desejo. Como nas estações que se sucedem, é preciso aprender a se retirar para que outros ocupem o espaço que parecia ser nosso de fato e de direito. Entre uma respiração e outra, entre um abrir e fechar de pálpebras, algo vai se desmanchando. Somos todos pequenos rios encharcados de tempo. Comuns, únicos. Nossa pequena história repete e sustenta a história do mundo."
Postado por
Andréia B. Borba
às
terça-feira, dezembro 11, 2007
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Manoel de Barros
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